domingo, 8 de novembro de 2015

O caminho é a educação: democracia e instinto de rebanho em Nietzsche


O título não tem nada de inusitado. Mas creiam, esse senso comum também foi dito por Nietzsche. Caberia em qualquer livro de auto-ajuda pedagógico ou em palanques eleitorais. Nesse espaço não terei como mostrar o texto todo. Inicio interrogando o tema proposto: “Democracia e Educação”. Seria necessário mais tempo de estudo, mas minha impressão inicial é que juntar essas duas palavras na mesma frase é um costume moderno. Parece-me que diz respeito a vínculos iluministas. Mas, efetivamente, essas duas palavras comparecem juntas com mais frequência no século XX, mais especificamente em sua segunda metade. O que significa dizer que, diferente do que parece à maioria, a operação destas duas palavras na construção de uma ideia é uma construção social recente. Com isso, quero dizer que não há associação natural entre elas; foi uma opção que a sociedade ocidental fez a pouco tempo. Também com isso pretendo desnaturalizar uma ideia que parece, a muito ouvidos, como uma vinculação necessária e óbvia.

Os gregos, inventores da democracia, pressupunham a importância da educação; mas a compreensão que tinham de democracia era bem diferente do que entendemos hoje. Do mesmo modo, a educação – se temos nos gregos boa parte de nossa inspiração – aproxima-se de nosso ideal, diria quanto a uma espécie de conteúdo ou currículo, mas os destinatários da educação são bem diferentes.

Como disse, parece ser um ideal iluminista a extensão da educação a todos, e aqui está a peculiaridade da compreensão moderna: a educação deve ser dada a todos. Apesar que sempre houve problematização desse “todos”: num momento muito recente estava fora do “todos” os analfabetos; identificar todos como universalização da participação é algo muito recente. Do mesmo modo, a educação para todos excluía, há pouco tempo, filhos de determinadas classes sociais.

Simplificando um pouco, citaria o movimento dos pioneiros da educação como um empenho em tornar o entendimento desse todos como “universal”. O lema dos artigos e panfletos de debate escritos por Anísio Teixeira era de “A educação é um direito de todos”. Apresentar os argumentos e a extensão do debate requer outro momento. Quero apenas insistir na ideia de que aquilo que para nós é senso comum já foi objeto de intensa luta pelos movimentos sociais no Brasil e no mundo.

Minha pretensão nesse texto é colocar, a partir de Nietzsche, o dedo nesse senso comum, procurando argumentar que há diferença entre garantir a universalidade do acesso à educação e tornar a educação um destino para todos. Com isso quero defender a tese de que a educação, em um país democrático, deveria estar aparelhada para dar as condições de acesso e estudo a todos que a tem como destino de si mesmo, e não como uma etapa obrigatória de todo cidadão. E aqui coloco meu questionamento mais especificamente voltado à Educação Superior. Concordo com o fato de que as crianças devem ter pouco

espaço para arbitrar sobre seu destino, daí a necessidade de submetê-las ao sistema educacional obrigatório. Contudo, cumprido a etapa obrigatória – pela aquisição das competências e habilidades fundamentais: ler, escrever e calcular – o estado deveria estar preparado para atender o destino que cada um – e não todos – coloca-se para si.

Democracia e educação: Nietzsche como contraponto

Democracia e educação não foram os temas prediletos de Nietzsche. Apesar de ter feito uma série de conferências Sobre o futuro das instituições de ensino na Alemanha e de escrever uma de suas Considerações Extemporâneas sobre Schopenhauer como educador, não me parece que a educação tenha sido seu mote principal. Por outro lado, ao pensar um projeto de formação de si não deixa de mostrar como a educação de seu tempo criava um ambiente desfavorável à essa importante tarefa que cada um tem para consigo.

Do mesmo modo, democracia não é um assunto motivador para o autor de Assim falou Zaratustra. Não gasta muito tempo refletindo sobre as questões da política como outros filósofos fizeram. Contudo, tem em mira ataques bem ordenados ao instinto humano mais primário, o instinto de rebanho: daí verá na democracia o maior aliado para a alimentação desse impulso.

Em minha compreensão, o período em que Nietzsche mais escreve sobre educação é em sua fase inicial, compreendia entre 1870 e 1876. Está embalado pelo helenismo; confia na arte como educação dos sentidos e da razão. Aposta na tragédia como expressão primordial da vida. E ensaia suas primeiras reflexões sobre o que poderíamos chamar, em seus últimos textos, da tarefa de ser o que se é. Sobre democracia, vejo principalmente em dois momentos a concentração de fragmentos: no Andarilho e sua sombra (escrito em 1881) e no caderno 34 de abril a junho de 1885. Não serão amenas suas palavras contra a democracia.

Entre abril e junho de 1885 escreverá: “Não me entenda mal: eu queria explicar com esse livro o por quê do surgimento do Reich alemão manteve-me indiferente: eu o vejo como um passo a mais na democratização da Europa — nada mais, nada novo. A Democracia, no entanto, é a forma de decadência do estado, uma degeneração da raça, um predomínio do malsucedidos: isso eu já disse uma vez”. (Fragmento póstumo 34 [146] de abril-junho de 1885). Expressão da degeneração, pois dissolve o singular no coletivo; ignora o peculiar em nome do corriqueiro. Pois ser único é resultado de empenho. Por isso dirá: “A democracia europeia é a menor parte de um desencadeamento de forças: sobretudo é um desencadeamento de preguiça, de cansaço e de debilidades.” (Fragmento póstumo 34 [164] de abril-junho de 1885) E vê não apenas a democracia como resultado dessa cultura do aplainamento, mas em sua origem vê o cristianismo, o que significa dizer que, para Nietzsche, a origem da democracia é, fundamentalmente, o pensamento cristão: “— Democracia é o cristianismo naturalizado: uma espécie de “retorno à natureza”, depois só poderá ser superada por uma extrema anti-naturalidade. — Consequência: dali em diante se desnaturalizou o ideal aristocrático (“o homem superior”, “nobre”, “artista”, “paixão”, “conhecimento”, etc). Romantismo como culto da exceção, gênio, etc.” (Fragmento póstumo 10 [77] do outono de 1887) Em O andarilho e sua sombra, § 275, parece ver que a democratização da Europa é um elo na cadeia das tremendas medidas profiláticas que são a ideia do novo tempo, e com que nos distinguimos da Idade Média. Dirá: “Agora é o tempo das construções ciclópicas!”, ou seja, ultrapassadas e sem segurança.

A educação não terá tratamento menos severo. No Fragmento póstumo 16 [6] da primavera-verão de 1888 escreve: “A educação: um sistema de meios visando a arruinar as exceções em favor da regra. A instrução: um sistema de meios para dirigir o gosto contra a exceção a favor dos medíocres. Visto assim, isto parece duro; mas, de um ponto de vista econômico, é completamente racional. Pelo menos para o longo período em que uma cultura se mantém ainda com sacrifício, onde toda exceção representa um dispêndio de força [algo que desvia, seduz, torna doente, isola]. Uma cultura da exceção, da experimentação, do risco, do matiz — uma cultura de estufa para as plantas excepcionais não tem direito à existência senão quando há muitas forças para que mesmo o dispêndio se torne “econômico”.”

Assim como a democracia, a educação visa a arruinar a exceção. Seu afeto está na regra, no ordinário, no comum. E reconhece que uma educação para a exceção teria efeitos financeiros nefastos no poder do estado. É mais racional, do ponto de vista econômico, tratar cada um como uma simples espécie do todos. E, de preferência, se elimina desse espaço aqueles que com ele não se conformam. Para Nietzsche, a limitação econômica leva ao convencimento racional: igual para todos é melhor do que diferente para cada um. Abaixo a diferença! Mesmo assim, desconfia da capacidade da educação em criar um novo tipo de ser humano. Em certo tom finalista, afirma: “Não é possível que um homem não tenha no corpo a qualidade e a predileção dos seus pais e ancestrais: mesmo que as evidências afirmem o contrário. Este é o problema da estirpe. Supondo que se conheça algo dos pais, é permitido uma conclusão a respeito do filho: alguma intemperança repulsiva, alguma inveja mesquinha, um maneira rude de sempre dar-se razão — as três coisas juntas constituíram sempre o autêntico tipo plebeu —, têm de passar para o filho, tão seguramente como o sangue corrompido; e com a ajuda da melhor educação e cultura não se consegue mais enganar a respeito dessa herança. — E outra coisa não desejam hoje a educação e a cultura! Em nossa época popular, ou melhor, plebeia, “educação” e “cultura” têm de ser, essencialmente, arte de enganar — enganar quanto à origem, quanto à plebe herdada no corpo e na alma. Um educador que atualmente pregasse a veracidade acima de tudo, gritando continuamente a seus estudantes (Züchtlingen): “Sejam verazes! Sejam naturais! Mostrem-se como são!” — mesmo um tal ingênuo e virtuoso asno aprenderia, após algum tempo, a tomar daquela furca [forcado] de Horácio, para naturam expellere [expulsar a natureza]: com que resultado? “Plebe” usque recurret [volta sempre]. —” (Além de bem e mal [1886] § 264)

Aqui, Nietzsche lembra um verso de Horácio: “Ainda que expulses com um forcado, a natureza (isto é, a índole inata de uma pessoa) voltará a aparecer” (Versos de Horácio, Epístolas, I, 10, 24). Há algo da constituição de si que educação e cultura alguma fará de outro feito. Empenhar-se nesse projeto é manter aceso o desejo de enganar e ser enganado.

De fato, leitores precipitados verão em Nietzsche as marcas das incompreensões que sempre foi sujeito. Fascista. Nazista. Aristocratista. Diria, caricaturas, certamente. Nietzsche, filósofo da suspeita, desconfia das sentenças que tomam a mente e os corpos da maioria. Reconhece o movimento das culturas, mas não deixa de lhe impor juízo de valor. Se por um lado temos conquistas com a democracia, se por um lado a educação começa a atingir a população em geral, ele não será otimista quanto aos resultados propalados pela ilustração, pois verá nisso o movimento de aplainar a diferença, de eliminar a variedade, de fazer sucumbir o diverso. A não ser que tenhamos em mente que a democracia e a educação sejam motor para a diferença. E se assim for, precisamos de outros dispositivos culturais, políticos e educacionais.

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